Enquanto continuo pensando na organização de escrita do blog, deixo mais um de meus contos para vocês.
Noite adentro
Uma garoa fina deixava minha pele úmida e arrepiada enquanto esperava o trem em Santo André. O vento que a acompanhava sibilava por entre as grades da estação e parecia se divertir com aquele frio noturno e tardio. Havia poucas almas corajosas que se arriscavam a ficar na estação Prefeito Celso Daniel depois das vinte e três horas em uma noite nebulosa e obscura como aquela. Queria não pensar na inexplicável morte da universitária que foi pregada nos dormentes corroídos dos trilhos. Dizem que seus olhos abertos pareciam bolas de gude negras e petrificadas e sua pele, tão pálida, rompeu-se num mosaico assustadoramente desenhado pelo leve toque do legista que a examinava. Desde então, ninguém quer pegar o trem perto da meia noite.
Olhei o relógio, já passara meia hora desde que eu pisara na plataforma e meu coração começava a palpitar. Respirei profundamente... o ranger das catracas acompanhado pelo alegre alarido de alguns jovens distraiu minha mente dos pensamentos mórbidos que a assolavam. Ouvia despretensiosamente a conversa do pessoal até que a luz que me iluminava se apagou... algumas pessoas deixaram apressadamente a estação. Tentei caminhar para outro ponto iluminado, mas meus pés pareciam cimentados na plataforma. Pouco a pouco todas as luzes se apagaram e o breu tomou conta da noite em companhia da garoa e do vento intensificados. Ouvia-se apenas a respiração descompassada de cada pessoa que ousou permanecer depois que a primeira lâmpada se apagou.
Alguns minutos se passaram enquanto tentávamos nos conter e não entrar em pânico. Um grito assustador e moribundo reverberou pela escuridão como se algum grande animal houvesse sido abatido. Podia sentir o descompasso do meu coração e toda a adrenalina que me dominava e, ainda assim, não podia arrancar meus pés daquele lugar. Ninguém ousava dizer qualquer palavra; o silêncio, as trevas e o frio voltaram a reinar absolutos. Repentinamente, uma luz forte e acalentadora brilhou nos trilhos, vindo em nossa direção. “É o trem.” A claridade aumentava a medida que se aproximava da plataforma, mas... barulho?
Não havia barulho, som ou qualquer outro indício de vagões sobre os trilhos. “Meu Deus... oh, Deus. O que é isso?” “Cadê o trem? Os vagões...” A claridade sobrenatural vagava alucinadamente pelos trilhos tentando nos dizer alguma coisa ou, quem sabe, procurando algo. Uma das pessoas foi atingida pelo clarão. “O que está acontecendo?” “Não, não...” “Ele está em choque, com os olhos estáticos e esbugalhados como imensas esferas sem vida.” Alguém chorava compulsivamente e eu não conseguia me desgrudar do chão. Novamente o grito excruciante ecoou noite adentro; a garoa transmutara em temporal e a escuridão era rasgada pela claridade de relâmpagos sombrios.
A luz atingira outra pessoa... “Vocês estão em quantos?” “Eramos seis, estamos em quatro.” Um vazio aterrador assolou minha alma enquanto imaginava que a luz devoraria cada um de nós lentamente. As quatro pessoas começaram a se desentender, culpavam uns aos outros pelo acontecido. “Nãããããooooo...”, um deles gemeu penosamente. Ofegantemente podia escutar algum choro e lamentação dos que sobreviveram. Passados alguns minutos perguntei se eles podiam se mover e, como eu, estavam presos. Tentei organizar meus pensamentos, provavelmente não teria muito tempo até a luz me alcançar.
Desesperadamente eu tentava tirar meus pés do sapato, mas parecia que tudo estava preso. Cada osso, cada fibra muscular, cada partícula de suor, cada célula arraigados na improvável prisão do que servia para proteção. Toda a água que desabava sobre meu corpo não me refrescava ante a visão inevitável da morte. Silenciei minhas vãs tentativas e percebi que não havia mais nenhum ruído na estação, somente o vento gemia sua típica canção. Será que... todos mortos? Ai, meu Deus! Um filete de sangue escorreu pelos meus lábios durante a derradeira tentativa de me livrar de meus sapatos, pingando uma gota disforme em minha blusa.
A luz continuava suas indas e vindas pelos trilhos quando um murmúrio lamentoso encheu o ar de tristeza e solidão. O clarão obscuro estagnou a uns dois metros de onde eu estava e eu pude reparar uma forma quase humana. O murmúrio se tornou uma pergunta insistente que se repetia invariavelmente - “Por que?”... “Por que?”... “Por que?” - e se agigantava na escuridão da noite nebulosa e fantasmagórica. A luz foi esmaecendo paulatinamente até se tornar um pequeno ponto luminoso quase imperceptível. Pude sentir um calor aquecendo meus pés ao retomar os movimentos deles. Vagarosamente as lâmpadas voltaram a acender e toda a estação se iluminou. Observei atentamente as seis pessoas que conversavam animadas. Algumas outras sentadas nos bancos, pareciam um pouco alarmadas. Talvez pelo adiantado da hora.
Olhei o relógio, já passara meia hora desde que eu pisara na plataforma e meu coração começava a palpitar. Respirei profundamente... o trem se aproximava. A garoa ainda molhava meu rosto, minhas pernas cansadas pesavam bastante. A luz quase me cegava enquanto eu via a máquina se aproximar... uma sensação estranha me enchia de pavor. Qual a razão para essa sensação? Uma memória, um trauma? Suspirei ao embarcar num vagão vazio com luzes piscantes e ar condicionado congelante. Esfreguei meus braços na intenção de me aquecer e olhei a plataforma pela última vez. Enquanto a escuridão ia ficando para trás tive a impressão de ver dois olhos petrificados em um rosto pálido e quebradiço como um mosaico.